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14 de julho de 2016

O problema das missas temáticas (Cura e Libertação e outras)

O problema das missas temáticas (Cura e Libertação e outras)

Tem-se tornado cada vez mais comum a prática das chamadas “Missas de Cura e Libertação”, Cerco
de Jericó, Sete Mergulhos de Naamã, Missa Sertaneja e outros tantos nomes temáticos para as celebrações das missas. Contudo, estas ações ocorrem sempre provocando polêmicas e debates. Segue minha reflexão fenomenológica destas ações.



A Santa Missa


A Igreja entende que a celebração da missa é o “centro de toda a vida cristã[1]”. A missa é tanto a Ceia do Senhor como a atualização do Seu sacrifício da cruz. Pela missa participamos no único e derradeiro momento sacrificial de Jesus. É o momento de fazermos memória do ciclo da vida, paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor.

A Santa Missa é o momento em que nos encontramos com o Senhor, de modo pessoal e comunitário. Pela unidade do mistério celebrado, a Igreja toda está presente: é o local da plena comunhão dos santos. Além de ser sacrificial, é a celebração da vida. A ressurreição que é festejada em cada missa e, de modo intenso, aos domingos. É ceia sem deixar de ser sacrifício; é morte sem deixar de ser ressurreição.

Missa e maturidade da fé


A Eucaristia é a fonte e o ápice de nossa fé. Na Eucaristia somos enviados e à Eucaristia retornamos
para agradecer. Ela é a origem de nossa missão ao mesmo tempo em que Ela é nosso ponto de chegada. Contudo, a participação na liturgia requer amadurecimento de vida, de crença e de celebração. A liturgia é permeada de símbolos, ritos e orações que pressupõe, por parte de quem participa nesta ação, certo grau de maturidade.

Recordo a prática dos primeiros cristãos. A missa era vivenciada em dois momentos. O primeiro momento era público, qualquer pessoa participaria inclusive os não cristãos ou não batizados. Por meio do anúncio da Palavra todos eram instruídos. Àqueles que desejavam ingressar “no Caminho” (expressão dos primeiros cristãos para aqueles que se decidiram por aceitar a Fé Cristã), era oferecida a catequese. Esta catequese era primeiramente querigmática. Era um modo de se proporcionar uma vivência pessoal com Jesus Cristo. A catequese não era apenas a transmissão de saberes e dogmas, antes era um momento de se fazer uma experiência com a pessoa de Jesus Cristo e seu amor. Ainda na catequese, após este despertar da fé e para a fé, vinham os elementos doutrinários. Uma vez certificado que estas pessoas possuíam maturidade cristã, eram lhes conferidos os sacramentos. Agora sim eles poderiam participar no segundo momento da missa, aquela parte que hoje chamamos de liturgia eucarística.

Um espaço vago


Por muito tempo a Igreja no Brasil (digo no Brasil por ser a realidade que conheço) se concentrou em ser estritamente sacramental. Todas as atividades das igrejas apontavam para algum sacramento. Este costume, de certo modo, ainda permanece hoje em dia. Reparemos nos cursos de noivos que, muitas das vezes, são encontros para se dar o “certificado para a celebração do casamento”. Aliás, analisemos também os cursos de batismo que se resumem a um encontro de algumas horinhas onde se fala sobre como deve se vestir para a cerimônia e em qual momento se deve acender a vela. A catequese, de modo mais amplo, em muitos lugares ainda possui a estrutura de curso: transmite-se saberes para que se possa chegar à Eucaristia ou à Crisma de modo que os catequizandos “saibam o que estão fazendo”.

Deste modo, uma ação eclesial estritamente voltada para a celebração dos sacramentos não conseguia proporcionar uma vivência cristã em vários sentidos. O anúncio querigmático era raro. Deus era apenas um conceito e a missa um evento protocolar social. Com o passar dos anos a própria ação eclesial dos bispos, padres e religiosos no Brasil foi sendo renovada. O clero percebeu rápido esta lacuna. A missa se resumia, em muitas comunidades, a um ritualismo sem vida e algo precisava ser feito.

A resposta ao espaço vago


A sensibilidade pastoral de muitos padres agiu rápido. Era necessário fazer algo para que a Fé fosse despertada. Jesus precisava ser vivenciado. A ressurreição precisava ser um evento salvífico. Contudo, o único modo de agir que as comunidades entendiam eram as celebrações rituais. Uma ação extra-missa não parecia ser conhecida (ou se era conhecida, era pouco estimulada). Refiro-me aqui a experiência de oração, a momentos de intimidade e de espiritualidade. Sabemos que houve inúmeros movimentos que preenchiam esta lacuna, mas de um modo geral, não era esta uma ação comum a todas as comunidades.

Uma proposta de evangelização


A missa, neste momento, é reinterpretada. Não aquela missa dos teólogos e liturgistas, mas a missa das comunidades com povo. Todos os elementos que deveriam ocorrer antes da missa para despertar a Fé agora são inseridos dentro do rito. As rubricas litúrgicas são relativizadas em nome de uma “sensibilidade pastoral”. A emoção e o afeto passam a ser despertados pelos inúmeros cantos e orações inseridas. A missa passa a ter um tema para que estes “elementos novos” sejam valorizados. As pessoas passam a ser evangelizadas dentro da própria missa.

Reitero que esta ação evangelizadora, querigmática e afetiva, deveria ocorrer antes da missa. Deveria ser um itinerário de tal modo que a missa fosse celebrada em toda a sua riqueza e em toda a sua compreensão. Contudo, devido algumas lacunas da ação evangelizadora, a própria missa virou o centro de evangelização e de despertar da fé. Já que as pessoas chegam na missa sem tal evangelização, esta evangelização passa a ocorrer dentro da própria missa.

São notadas duas consequências.  A primeira é que os participantes destas missas têm sua espiritualidade nutrida de algum modo. Inúmeras pessoas são despertadas na fé. Muitos que haviam abandonado a prática religiosa retornam às missas dominicais. Outras tantas passam a frequentar mais do que uma missa na semana. Como resultado tem-se o engajamento pastoral e evangelizador destas pessoas despertadas na Fé dentro da missa. Deus não é mais celebrado como conceito, mas cultuado como Pessoa.

A segunda consequência é a relativização das normas litúrgicas. Vira comum o ditado “a cada sacristia, uma liturgia” se referindo a um modo próprio de cada comunidade ou de cada padre presidir a Santa Missa. Despertar a emoção e afetividade das pessoas se torna o principal objetivo. A percepção de unidade de rito é deixada de lado para que se siga “os impulsos do Espírito”. O silêncio deixa de ser praticado. Euforia vira a norma em muitos lugares. Surgem cada vez mais nomes de missas como estratégias de mercado religioso. A participação ativa dos fiéis começa a ser entendida como “todos podem tudo”. E a sobriedade da missa, a homilia mais madura e as orações rituais se tornam “capricho dos tradicionalistas”.

Proposta


Percebo que se deve por em prática o pedido dos Papas e da CNBB de que a Igreja, de modo especial as paróquias, se tornem menos sacramentalistas e mais evangelizadoras e comunitárias. Não digo que se deve acabar com todas as missas das paróquias, não é isso. Digo que as atividades das comunidades devem proporcionar estes elementos de evangelização que as “missas de cura” assumiram para si. Após este despertar na Fé, que a espiritualidade seja vivenciada e proposta pelas próprias comunidades paroquiais, e não apenas pelos movimentos apostólicos. Que os momentos de oração e de vivências cristãs sejam rotina dentro das atividades da paróquia. É preciso nutrir as várias dimensões da Fé para que a missa volte a ser o que ela é: ceia e memorial da paixão, morte e ressurreição do Senhor.

Para que toda a assembleia seja participante ativamente, não é necessário inserir inúmeros cânticos ou orações “extras”. Contudo, estas demandas espirituais, emocionais e afetivas da religiosidade precisam ser nutridas de alguma forma, e antes da missa. No fundo, o itinerário é bíblico e foi proposto por Paulo. Na carta aos Romanos, Paulo faz uma série de questionamentos cujas respostas se relacionam causalmente: “Mas como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador” (Rm 10,14).

Por fim, compreendo que o itinerário que deve ser feito para que se vivencie a missa no modo pelo qual a Igreja propõe é este: 

  • Haver o anúncio querigmático, uma pregação para que a Fé seja suscitada. Este anúncio deve ser vivo e envolvente. Que fale todo ser humano e ao ser humano todo, em todas as suas dimensões e demandas.
  • Esta Fé suscitada deve ser amadurecida por uma boa catequese. Catequese que prossiga com o anúncio querigmático, fornecendo elementos de aprofundamento da doutrina.
  • A Fé amadurecida desperte a oração. Esta oração entendida em amplo significado. Contudo, que os fieis sejam educados para a participação plena da missa e da missa plena. Na sobriedade que os ritos propõem, incluindo os símbolos próprios da missa e sua dimensão sensitiva.
  • A oração tenha como pressuposto aquilo que se crê.
  • Enfim vivenciar aquilo que foi rezado e crido.







[1] INSTRUÇÃO GERAL AO MISSAL ROMANO, 16.

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