O que será uma escola sem partido?
Muito se tem falado sobre o
movimento da “Escola Sem Partido”. Há todo um discurso que possui uma
tonalidade agradável, vendendo a ideia de uma escola livre de quaisquer
imposições. Contudo, a sua prática não será tão agradável assim. Pretendo analisar
alguns pontos e oferecer elementos de reflexão. Evidentemente que trarei meu
ponto de vista, contudo, meu objetivo é partir da análise dos textos e desenvolver
algumas reflexões para assim propor minhas conclusões.
Considerarei os três grandes
documentos legisladores que tocam neste assunto: a Constituição de 1988 (a
carta magna brasileira); a Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA) e; a Lei 9.3954/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional –
LDB).
O Papel da Educação de acordo com as Leis do Estado Brasileiro
O país entende a educação com as
seguintes finalidades. Ela deve levar ao pleno desenvolvimento da pessoa,
considerando este pleno desenvolvimento tanto o exercício para a cidadania
quanto a qualificação para o trabalho[1].
A educação não é uma aquisição de saberes técnicos, exclusivamente.
A educação é um exercício da capacidade
crítica do indivíduo perante a sociedade em que se encontra. Dito de outro
modo, não se pode ensinar as crianças a apenas “apertar o parafuso da máquina”
sem também fazê-las se compreenderem como pessoa humana integral e integralizadora,
que dialoga numa sociedade que é guiada por pressupostos teóricos e ideológicos.
Neste aprimoramento do educando como pessoa humana deverá ser incluída a
formação ética e o pleno desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico[2].
Como se deverá chegar até esta
formação cidadã? Tanto a Constituição
quanto a LDB entendem que se deve ter alguns princípios para educação em nosso
país[3].
O ponto de partida está na liberdade de se ensinar e de se aprender. Nesta
liberdade de se aprender e de se ensinar, inclui-se também a liberdade de se
pesquisar e também de se divulgar o pensamento, tendo em consideração o
pluralismo de ideias e das concepções pedagógicas. O texto das leis já preveem
a prática democrática do processo educacional, colocando no mesmo pódio todas
as ideias possíveis. Aliás, o texto ainda diz mais, que é dever da atividade
educacional se abrir para todas as possibilidades de pensamentos, não definindo
nenhum cânone a respeito do que é o verdadeiro ou o falso. Isto quer dizer que apontam mais para uma
prática de diálogo, que inclui as chamadas diferenças, tendo em vista a prática
democrática necessária para se viver em sociedade. Os valores a serem
divulgados os textos também já preveem: “deve-se ter a difusão de valores
fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de
respeito ao bem comum e à ordem democrática”[4],
de modo que se fortaleça os vínculos da família, os laços de solidariedade
humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.
A educação é um ato político
Retomo aqui uma ideia que se tem
no senso comum. Para alguns, a educação é restrita a uma prática técnica e
empregatícia, devendo o estado formar não cidadãos, mas trabalhadores. De
antemão digo que a atividade educadora também inclui a formação para o mercado
de trabalho, mas não é a sua finalidade exclusiva. Educar é sempre fornecer
elementos para que o indivíduo se transforme em ser político. Não me refiro a
uma política partidária ou ideológica. Não é papel da educação formar
indivíduos que se conformem com a ideologia neo-liberal ou socialista;
capitalista ou comunista (como se também estes termos se referissem aos únicos modos
de se entender a sociedade. É preciso recordar que há diversas teorias que vão
além do binômio capitalismo-comunismo). Ao me referir que a educação deve
transformar o indivíduo em ser político, tenho presente aqui um significado
etimológico do termo. Político é aquele que vive em sociedade e que, portanto, sua
conduta e seu agir operam para e com a sociabilidade.
A educação é o modo pelo qual se
desperta a consciência de tal maneira que o indivíduo se perceba como sujeito,
ou seja, um ser que se relaciona com seu ambiente e com os seus pares. Contudo,
este relacionamento não é fadado a se repetir mecanicamente, ou pelo menos não
sem antes haver um mínimo de criticidade. Além do um-mais-um e do bê-á-bá
ensinados na escola, há o despertar para a capacidade de se posicionar perante
a sociedade que já está posta. Ele, o educando, se vê convidado a entender o
que move o ser humano e suas relações. Também problematiza as respostas que já
foram dadas e se propõe outros problemas. A educação verdadeira não forma um
ser estático, mas um sujeito dinâmico e dinamizador, que opera na sociedade
transformando-a enquanto também transforma-se a si mesmo.
A escola sem partido
O movimento da escola sem partido
vende uma ideia que, num primeiro momento, parece ser boa: a ideia da neutralidade
do ensino. No entanto, ao se ter contato com os textos do projeto de lei e
também com os argumentos que a defende, o que se vê é o oposto. Em nome da “imparcialidade”,
defendem uma visão de ser humano e de sociedade como primaz sobre as demais. Em
nome de oposição a uma ideologia, se propõe outra ideologia que deve ser
seguida. É o tolhimento, sob diversos aspectos, da prática democrática
inclusiva.
Primeiro porque a realidade das
escolas, sobretudo as públicas, é heterogênea. Levando o que o texto da PLS
193/2016 diz, a escola não poderá abordar nenhum pressuposto moral ou
ideológico que seja diferente das convicções do alunado e de suas famílias.
Afirmação bem sensata se fosse para uma sala de catequese, onde todo o conteúdo
deve estar de acordo com o magistério eclesiástico católico. E, ainda tomando o
exemplo da sala de catequese, se for abordado um tema controverso, deverá
sempre apontar para as próprias conclusões da doutrina católica. Com relação a
sala de aula, o que se pretende é que todos os conteúdos apontem para uma mesma
conclusão pré-estabelecida. Mas... foi estabelecida por quem? Em nossas salas
de aula há gente de ambos os sexos, de todos os gêneros, de idades distintas,
de realidades socioeconômicas muitas vezes antagônicas, de orientação
ideológica e/partidária que não são uníssonas. A qual dessas realidades o
professor tomará como pressuposto de seu ensino? E onde está a prática da
educação que visa o convívio com as diferenças?
Segundo. O equívoco para com o
que se entende por doutrinação. Parto de minha experiência docente. Leciono
Filosofia em escola pública. Sou católico convicto de minha fé. Exerço minha
docência no estado laico e partindo da laicidade da prática educativa. Abordo
temas que vão de Santo Agostinho a Nietzsche: em um a moral cristã é o único
modo de ser uma pessoa plena, no outro a moral cristã deve ser radicalmente
rejeitada para que o próprio indivíduo diga a si mesmo o que deve ser feito.
Leciono para cristãos e ateus; mulçumanos e feministas; heterossexuais e
homossexuais. Numa de minhas aulas em que abordamos Santo Agostinho, um ateu
poderá (caso este projeto de lei seja aprovado) me denunciar ao Ministério
Público e eu ser PRESO IMEDIATAMENTE. Qual a prerrogativa usada? A de que estes
estudantes estavam se sentindo doutrinados por mim pelo fato de eu abordar
Santo Agostinho, um tema que não corresponde às convicções ideológicas deles.
Imagine: eu preso, passando um tempo no xilindró e sendo solto. Retorno eu à
sala de aula e leciono a genealogia da moral em Nietzsche. Daí, desta vez, os
alunos cristãos se levantam e me denunciam. Novamente sou preso com a justificativa
de que estava doutrinando no ateísmo os alunos cristãos. Retorno ao xilindró e
saio novamente. Sigo o programa de curso e abordo a concepção de natureza
humana no medievalismo. Serei denunciado pelos estudantes homossexuais por
estar doutrinando eles na heterossexualidade. Mais uma vez sou eu preso e
retorno a dar aula. Sigo o programa do curso e abordo o feminismo de Simone de
Beauvoir. Lá vai eu ser mais uma vez denunciado e preso. Tudo isso por apenas “dar
aula”. Vê se pode uma coisa dessas!
O equívoco está em se conceber
por doutrinação a abordagem feita dos conteúdos. Em sala de aula, ainda me
dando como exemplo ilustrativo, quando leciono um conteúdo eu assumo para mim,
naquele momento, o posicionamento daquele tema. Deste modo poderei sanar as
dúvidas e, juntos com os alunos, nos apropriarmos dos conceitos específicos da
matéria. Apenas num segundo momento problematizamos o que foi dito. De
imediato, a aula é ministrada não sob o um viés interpretativo que esteja de
acordo com esta ou aquela ideologia, mas sob a perspectiva do próprio autor ou
do próprio tema. O momento seguinte, o da problematização do tema, é que o
estudante desenvolverá sua criticidade, mas uma criticidade metódica, com
ideias concatenadas e explícitas. De tal modo que saibam explicar os seus
porquês.
Contudo, segundo o movimento da
escola sem partido, os professores serão amordaçados. Não terão a liberdade
docente, prevista em Lei. Aliás, deverão reproduzir um modo de pensar
unilateral. Se a educação é também para a prática cidadã da diversidade e de
relacionamento com o diferente, em que outro momento poderá ocorrer este
despertar para a tolerância, já que a escola sem partido quer acabar com toda
oposição? Recordemos o que já está em lei, a educação deverá respeitar todas
as ideias.
É preciso retomar também que o
ensino não se limita a saberes das ciências exatas. Não se aprende apenas sobre
as equações de segundo grau nem apenas sobre os movimentos sísmicos ou sobre
das ligações covalentes. É o despertar para a criticidade do contexto de aplicação
destes conteúdos. A propósito, a criticidade deve ser tão despertada que
inclusive o ensinar destes mesmos conteúdos devem ser questionados e
compreendidos em seus “porquês” na proposta educacional.
Por fim, entendo que a proposta
da escola sem partido é uma grande falácia da imparcialidade. O que se quer, na
verdade, é impor um viés educativo e ideológico sobre os demais, não respeitando
a pluralidade de pensamento. É uma lei da mordaça, que criminaliza a prática
docente por propor modos de se pensar que favorecem a prática democrática.
Pretende-se doutrinar os estudantes alegando a não doutrinação. Para PLS
193/2016 (Programa Escola sem Partido), meu voto é NÃO!
[1] Cf.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 205.
[2] Cf.
Lei 9.3954/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB), Art 35,
III.
[3]
Cf. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art 206; Lei 9.3954/1996 (Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDB), Art 3, 27 e 32, III.
[4] Lei
9.3954/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB), Art 27I.
Nenhum comentário:
Postar um comentário