Páginas

14 de maio de 2012

Renuncie a si mesmo


Em um dos trechos mais intrigantes da sagrada escritura está escrito "Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome a cada dia a sua cruz e siga-me" (Lc 9,23). Não é estranho um pedido destes? Confesso que nunca gostei muito deste trecho. Achava-o duro demais.

Entretanto, reparando nos sons que ecoam dentro de nós ao ouvir este trecho sagrado, peguei-me refletindo sobre a vida. Há algo de muito especial na vida que chamamos "sonho". O sonho é um objetivo fitado: o colorido de sua imagem faz nosso coração bater mais forte. Os sonhos são diversos para cada etapa da vida: o sonho de ter um/a namorado/a; de fazer dezoito anos; de ter uma profissão; se formar numa faculdade; ter um bom emprego; casar; ter filhos; casa própria; carro próprio... Os sonhos nos acompanham pela vida e, a cada etapa deste percurso, um sonho novo nos desperta no meio da noite.

Há um estado de "desejar algo mais" inerente à nossa experiência humana da vida. Nunca nos é suficiente o estado atual. Ele sempre precisa ser ultrapassado por algo maior e melhor. Ao conseguir um emprego, o próximo objetivo é melhorar o salário "subindo" de cargo. Ao comprar o primeiro automóvel, muitas das vezes usado, almeja-se por um carro que seja zero quilômetro. Ao se casar, o sonho conseguinte é o dos filhos. E assim assoviamos a vida, cantarolando para nós mesmos a etapas conquistadas, mas sempre com um sabor de "quero mais".

A transformação - ou evolução - só se dá na mesma medida em que "negamos" a vida tal qual se apresenta a nós no momento presente. Esta vida é a nossa, mas desejamos outra configuração de vida. Querer preservar a vida é deixá-la se perder (cf. Lc 9,24). A vida não foi feita para ficar estatizada, ela é dinâmica, e sua dinamicidade se dá na medida em que o momento presente se torna passado, isto é, não se apegando demasiadamente ao momento atual, deixando-o transcorrer naturalmente, e almejando pelo próximo momento. A busca por novas realizações é o reconhecimento de que o estado atual pode ser melhorado.

Há tantas pessoas que acabam se apegando a própria situação de vida que nunca melhoram: situação de depressão; de emprego mal pago; de situações conflituosas na família; drogas, etc. O apego que se tem com a vida atual é o seu grande veneno. O desastre é administrado a si mesmo com o sabor da morte: apegar-se ao momento presente é tirar-lhe o dom que este tem de fecundar nossos sonhos. É preciso negar-se a si mesmo. Negar-se significa TRANSFORMAR-SE.

A dor da "cruz" é a dor da transformação. Apenas pela via-sacra, e no monte Gólgota, que a morte pôde ser vencida e transformada em vida. O símbolo fúnebre do sepulcro se torna a marca da vitória: o túmulo está vazio. Foi por não se apegar a situação de ódio atual que Jesus se entregou na cruz. Sua vida merecidamente foi negada para que pudesse ser preservada. Jesus não era nenhum suicida maluco. Não era a negação da VIDA em si, mas a negação da configuração da vida. E esta negação gerou a transformação, e seu passo necessário foi a cruz.

É fato que a mudança é sempre dolorosa. Mudar de casa exige um bom tempo empacotando coisas, carregando peso e fazendo pequenos reparos na nova casa. Não é fácil. Mas ao perceber que a mudança se deu para um ambiente melhor, a recompensa é imediata. Para o jovem é um pouco doloroso ter que sacrificar suas horas de sono e seus finais de semana por que tem algum trabalho da faculdade para se fazer. Se este mesmo jovem sonha com um casamento, também é doloroso ter que se abster de diversões e outros vícios consumistas para poupar uma boa grana para se casar. Nada nesta vida se dá sem sacrifício. O que vale mais, custa mais.

Em outras palavras, o pedido de Jesus, no meu modo de entender foi: SONHE! Sempre mais alto, mas sonhe! "Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação de vosso espírito" (Rm 12,2). Apego a si mesmo é não querer se transformar, achar que tudo está bom do jeito que está. Apegar-se a si mesmo é não permitir o novo em nossa vida.

Sonhe! Lute! Vença! Transforme-se!

Um comentário:

  1. Quando se fala em "estatização", biologicamente não falamos de vida. Onde não há dinâmica, não há vida!
    No corpo humano, sabemos que há vida pela pulsação cardíaca. Nas plantas, se a seiva não percorre o caule, seca.
    E assim também é nossa vida "interior", se não flui, não se renova, "seca".
    Ao meu ver, o "si mesmo" revela um estado imóvel, permanente. Quando utilizamos essa expressão para algo, queremos dizer "próprio de", o que sugere essa imutalidade. Daí vem o "renuncie a si mesmo".
    Tome sua cruz, passa então a se tornar um "tem consequências", a evolução requer "mutação", que nem sempre é um processo prazeroso.

    Belo post!
    Abraço

    ResponderExcluir